sexta-feira, 10 de junho de 2011

O Advogado e os Livros

“Que nenhum tirano
Pregue o povo na cruz!
E que nenhum insano
Ao crime faça jus!”

José Almiro Gomes (in: “Natal de Jesus”, Coaraci, Natal de 1982)

Meu tio José se foi, no dia 8 de junho de 2011. “José, meu irmão mais velho” – como sempre falava minha mãezinha, quando a ele se referia. E quando ela morreu, em 2005, foi a última vez que nos falamos.

No ano de 1984 passei com ele alguns dos momentos mais agradáveis de minha vida – ao lado daqueles que hoje me são os companheiros: os livros.

Poucos falavam tanto, e raros tinham tanto ainda por falar! Graças a ele publiquei minha primeira poesia, e ouvi muitos poemas; conheci Neruda, fui apresentado a Lorca, descobri os plágios de Jorge Amado, e me admirava em ver a intensa religiosidade daquele homem que, preso na juventude por ser comunista, convertera-se ardorosamente a uma fé que contagiava.

Tio José, contudo, só teve uma rápida presença em meus tempos de faculdade – encontrei-o num Congresso de Direito, dos muitos que fui naquele tempo, na banca de um livreiro a comprar livros.

Livros! Quantos livros!

***

Anos depois, já formado, encontrei certa feita o Confrade Romilton Sobrinho, que me antecedeu na Presidência da Academia, junto a um vendedor de obras jurídicas, daqueles vagamundos. Em Caetité nenhuma biblioteca se iguala à dele, e a mim cabia ser expectador daquela negociação. O vendedor elogiava o acervo do colega, mas em dado momento comenta que, apesar de Romilton ser uma traça, havia na Bahia um advogado que nenhum desembargador possuía cabedal maior. E foi falando, falando, até que eu consegui soltar um “Eu sei, é muito livro mesmo”. Os dois pararam, me olhando, surpresos – eu que até então estivera meio alheio diante daquela troca de informações entre ambos... O livreiro me desafiou: não poderia conhecer, pois tal advogado morava numa pequena cidade, a centenas de quilômetros de Caetité! Então perguntei-lhe: “Ele não mora numa casa com um andar que é todo a biblioteca?” – foi o bastante para o homem arregalar os olhos, admirado, pois eu acertara. Como sabia aquilo? “Ele é meu tio”, expliquei...

***


Tio José fora bem novo para Coaraci, então uma jovem cidade que se erguia sobre o ouro que foi a exploração do cacau no Sul da Bahia. Apesar de lugar violento, “terra de jagunços” diriam, construiu uma sólida carreira advocatícia, foi maçom, enfrentou as agruras desta profissão ingrata dos embates jurídicos... Foi ameaçado de morte por um juiz venal que ele, cioso do Direito, confrontara os desmandos e afastara...
Apesar de ser o “irmão mais velho” da minha mãe, o tio José tinha sua filha mais velha, Rosemarie, com a minha idade – sendo eu o caçula da Marion. Seguia-se a Marta Simone, afilhada de meus pais. Vinha então o outrora franzino Franklin José, que seguiu com brilhantismo a carreira paterna; Lílian Maria (com quem aprendi a chamar “paciência” de “titienca”) era a caçula até a chegada da quarta menina, que recebeu o nome da mãe – Edileusa.

O vasto mundo que viveu o tio José foi também um mundo de transformações profundas – uma geração que assistira a dolorosa e prematura morte da mãe porque inda não havia entre nós a penicilina – e mergulhou afinal pelo século XXI das aventuras tecnológicas, é algo que apenas os pósteros poderão um dia palidamente compreender, com aquele olhar da distância.

Não é o olhar que agora tenho... É sim o olhar de tristeza e dor da proximidade, algo que mesmo a distância imposta pela vida é incapaz de calar – porque é a dor do sangue, do parente que se vai.


O homem dos livros, dos sonetos que guardo até hoje – apesar de já ter destruído os meus próprios versos canhestros – revive na imagem da fotografia que volta e meia reencontro e que ele me pediu para tirar, eu com aquela máquina infantil, a registrar algo que ainda amo em Caetité – um carro de bois.

Um carro de bois é anacrônico, marca de um tempo passado que resiste emitindo seu lânguido rangido. Meu tio José, o “irmão mais velho”, foi ele também anacrônico: um homem que amava os livros, num país que não os lê...

Que Deus o receba, como no dia que me chamará também, talvez como um dia brincava comigo meu tio José Almiro: “André Luiz, André Ruiz, André Juiz”... Para que eu finalmente entenda, meu tio, que “juiz” serei de mim mesmo.

Porque agora, com vossa perda, meu único juízo é o de que a Advocacia baiana, com “A” maiúsculo, perdeu um de seus maiores nomes.
Caetité, 9 de junho de 2011